Desmistificando

 

 

Para se fazer uma grande viagem de veleiro, precisamos de algumas coisas básicas: um barco grande, novo, extremamente robusto, caro e confortável; ter muito dinheiro; possuir todos os equipamentos eletrônicos existentes em dobro; ter um capitão que contabilize, ao menos, cem mil milhas navegadas, velho lobo-do-mar, que tenha enfrentado muitas tempestades (e, se ele está vivo, é porque resistiu à elas!).

 

Se você acreditou em todas essas afirmações acima, começamos mal! Espero, na verdade, que você esteja me xingando pela ironia! Mas, eu gostaria de aproveitar a frase e analisar cada item dela, para desmistificar de vez a navegação de cruzeiro atual.

 

Vimos muitos veleiros novos, grandes, caros e confortáveis, ao longo de nossa viagem: praticamente todos parados nas marinas! Viajando, lembro apenas dois barcos que encaixo nessas características: o Kaká-Maumau e o Gabi, dois maravilhosos Dolphin’s 46, os dois de Ilhabela. Os outros 99% dos barcos, com certeza, não tinham todas essas características, mas estavam viajando e realizando o sonho de seus proprietários. Alguns, e entre eles o Fandango, não tinham nenhuma dessas características! Mas seguiam, conhecendo novos portos, levando a bordo tripulações felizes e animadas.

Na verdade, o que um barco precisa é ser “marinheiro”, ou seja, navegar bem. Deve ter um bom projeto de casco, estaiamento e velame. É recomendável ter cabos e comandos principais à mão e não deve obrigar sua tripulação a esforços excessivos. Mas, principalmente, ter boa manutenção, sempre! Não da pintura, do verniz da madeira ou do piso brilhante da cabine. Nem daquele “lascado” na popa, tirado por outro barco ou pelo píer, que te fez arrancar os cabelos e brigar com um monte de gente!

As manutenções de estaiamento, com as trocas periódicas que ninguém lembra de fazer, do motor, da parte elétrica, casco, rabeta, eixo, hélice e válvulas que fecham as aberturas no casco, são as primordiais e não podem ser ignoradas.

Quanto ao tamanho do barco, eu acho que o tamanho certo é o menor possível, para acomodar bem a tripulação que mora efetivamente a bordo. Amigos, parentes e filhos que irão te visitar? Sempre se aperta um pouquinho na hora que precisar ou, se necessário, aluga-se um quarto numa pousada, pois existem em quase toda a costa. Viver em um barco muito grande com pouca tripulação, acaba sendo caro em marinas e dá mais trabalho para manter, diminuindo seu tempo e dinheiro para aproveitar os lugares por onde está passando.

Ah, você reparou que eu deixei o item “robustez” de lado! Deixei-o propositalmente, pois este é o “mais relativo” de todos. Robustez, de certa forma, implica em segurança. Agora, imagine você comprar um tanque de guerra para ir de São Paulo ao Rio de Janeiro pela Via Dutra. Imaginou? Você estará totalmente seguro, mas a viagem será lenta e horrível! O mesmo pode acontecer com um veleiro. O item “robustez” deve ser avaliado dependendo dos lugares por onde se pretende viajar. Para conhecer o mundo “entre trópicos”, seguindo a “estrada dos ventos”, tão conhecida das grandes navegações, bons barcos de fibra são suficientes. Aliando-se conhecimentos de meteorologia e ferramentas para obter os dados necessários para um boa previsão de tempo, você e sua família estarão seguros e terão um casco de pouca manutenção.

 

Já disseram que dinheiro não é problema, é solução! Não concordo com essa afirmação, pois conheço muitas pessoas com dinheiro, que são escravos dele. Por outro lado, viajar sem estrutura financeira nenhuma, certamente vai lhe causar problemas. Essa inconseqüência pode fazer um sonho virar um grande pesadelo!

O lado bom é que não se precisa de muito dinheiro para viajar. Nossa despesa mensal girava em torno de dois mil reais para os três. Comíamos fora, ficávamos em marinas e não nos privávamos de aproveitar e conhecer lugares. Ainda fizemos extravagâncias, comendo algumas vezes em restaurantes caros! Esse valor mensal não é difícil de ser obtido pela classe média, com aluguéis de imóveis, aplicações financeiras ou aposentadorias especiais. É importante ter uma renda mensal, que cubra suas despesas ou parte delas. Eventuais charteres ou trabalhos remunerados podem gerar recursos, mas não se pode contar com eles sempre.

Para os jovens ou solitários, que não tem como comprar um barco, mas desejam conhecer o mundo viajando, há uma boa opção: pegar caronas e servir como tripulantes de outros barcos, podendo até ser remunerados por isso. Para tanto, é conveniente ter boa educação, saber velejar, obedecer ordens, ser prestativo e, se possível, ter inglês fluente. Pode-se navegar o mundo todo assim! Basta estar nos lugares certos, nas épocas devidas. Deve-se, no entanto, saber escolher o barco e as pessoas com as quais vai navegar, fugindo de barcos em mau estado e tripulações ou comandantes “difíceis”.

 

Eletrônicos são totalmente dispensáveis a bordo, já o provaram Joshua Slocum, Vito Dumas, Bernard Moitessier, Robin Knox-Johnston e outros grandes velejadores do passado. Mas, eles geram um grande conforto e segurança para a navegação, apesar de custarem caro. Na prática, existem aqueles que valem o investimento e que eu considero “opcionais obrigatórios”.

O mais conhecido e importante deles é o GPS. Usávamos o mais barato deles, portátil, que custa menos de R$ 400,00 e foi mais que o suficiente. Tínhamos dois a bordo. A segurança que ele dá na navegação e na entrada de barras é incrível. Dica: nunca dispense as cartas náuticas em papel e nunca deixe de plotar ou anotar sua posição periodicamente. Se tudo falhar, você pode fazer a antiga navegação estimada (e não deixe de treiná-la!)

Outro, mais caro, mas que gera um conforto muito grande é o piloto automático. Quanto mais longo o trecho a ser percorrido, mais útil ele será. Ficávamos abrigados do sol, da chuva e do desconforto, e deixávamos nossos fiéis “motoristas”, Jarbas e Alfredo, levando o Fandango mar afora. Eram tão importantes para nós, que tínhamos dois... e batizados!

Um ecobatímetro, para medir profundidades, é importante em regiões rasas.

Esses bastam. Não se necessita mais. Só devemos lembrar que eletrônicos geram conforto, mas são falíveis. Portanto, tenha sempre bússola e alidade a bordo. Confirme visualmente e nas cartas náuticas as posições que o GPS informa. Se for cruzar oceanos, leve sextante e tábuas de navegação. Confirme periodicamente o rumo real que o barco está seguindo. Confronte a profundidade informada com a existente na carta. Cuidado nunca é demais!

 

É navegando que se aprende! É muito bom ter velejadores experientes a bordo, mas, na falta desses, temos que continuar navegando. Se fossem necessárias milhares de milhas navegadas para se viajar com o próprio barco, nós ainda estaríamos em Ilhabela, sonhando em viajar. A tripulação do Cavalo Marinho não estaria agora no Caribe, aproveitando a bela região. Inteligente, Rodrigo, seu comandante, contratou e convidou tripulantes com mais experiência, aprendendo com eles enquanto viajavam. Ganhou experiência e está vivendo intensamente.

Um bom comandante de cruzeiro tem habilitação, sabe navegar sem os eletrônicos e sabe velejar defensivamente, mantendo sempre uma área vélica compatível ao vento e distância razoável de obstáculos. Sabe, ainda, priorizar a segurança e equipar o barco com todos equipamentos obrigatórios e outros que achar necessário. E, principalmente, é cuidadoso e tem bom senso para decidir.

A habilitação é fácil de se conseguir. Existem excelentes cursos que, além de fornecerem conhecimentos para a habilitação, dão muitas informações sobre navegação em geral. Quanto mais se veleja e se navega, mais se aprende. Se possível, deve-se correr regatas, onde se aprende muito sobre manobras, regulagens e resistência dos veleiros.

Atualmente, as boas previsões de tempo dão mais segurança à navegação. Mesmo sem sermos meteorologistas experientes, com algumas informações básicas e alguns endereços de sites de previsão, podemos ver facilmente se devemos sair ou não, ou para que direção necessitamos fugir. E precisamos lembrar sempre, que o “velho lobo-do-mar”, que se vangloria de ter enfrentado uma tempestade, na verdade, deveria estar dando graças por ter escapado dela, pois uma das características de um bom comandante é não arriscar seu barco e sua tripulação.

 

Superbarcos, muito dinheiro, alta tecnologia em eletrônicos, velhos lobos-do-mar enfrentando tempestades: removendo todos esses engodos que oprimem nosso desejo de sair velejando, ainda sobra muito! Sobram o homem, seu conhecimento e seu pequeno veleiro, respeitando seus limites e a natureza. Viagens maravilhosas, relacionamentos fantásticos e grandes aventuras podem se concretizar assim.

Parta! O mar é para todos e não é o monstro que muitos pintam, respeitados seus humores!